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terça-feira, 3 de junho de 2025

TRIBUTO À IRMÃ ALINE



Programa "Cidade contra cidade" do apresentador Silvio Santos. Alunas do terceiro ano normal do C. S. C. J , em 1970, na peça " Tiradentes ontem, Tiradentes hoje."

Lúcia Helena Carneiro

Há exatos 54 anos vivíamos a experiência de estarmos ainda sentadas nos bancos escolares, mas com a expectativa de serem os nossos últimos meses no Colégio Sagrado Coração de Jesus.
A vida adulta, mais séria e com outras responsabilidades nos esperava ali na frente. A proximidade dessa drástica mudança pode ter gerado sentimentos diversos: liberdade? Alívio? Medo? Saudades? Tudo isso pode ter vindo junto e misturado ao mesmo tempo. Afinal, a mudança seria radical.
O grupo que convivia há bastante tempo, inexoravelmente, ia se dissolver. É claro que os rumos se diversificariam. A Escola Superior de Enfermagem e a Faculdade de Filosofia conseguiram reunir e manter alguns dos nossos grupinhos e fortaleceram outros laços, mas podemos dizer na linguagem popular: “A debandada foi geral”. Mas, com certeza, cada uma de nós carregou boas lembranças da convivência que tivemos, ou carregou traumas? Não é hora de romantizar, nem de remoer possíveis amarguras que possam ser reavivadas, mas, com segurança, afirmo: cada uma deve ter na memória um momento significativo, o carinho de uma professora ou a lembrança de um acontecimento marcante das nossas vidas naquela tão famosa e cantada década de 60.
Como ficaria extenso nos referirmos a todos os docentes que foram importantes em nossas vidas de estudante, peço desculpas por não os citarmos agora e escolhemos homenagear Irmã Aline porque marcou muito nosso último ano e pelo extraordinário trabalho que desenvolveu conosco nas turmas de terceiro normal A e B.
Irmã Aline começou nos apresentando a obra intimista e densamente feminina de Cecília Meireles. Pertinente citar aqui a poesia “Retrato”, muito adequada para esse nosso encontro e que assim se inicia: “Eu não tinha este rosto de hoje / Assim calmo, assim triste, assim magro...” Vejam, bem adequada para esse dia, pois há 54 anos obviamente não tínhamos este rosto de hoje, pelo contrário, tínhamos o vigor dos 17 ou 18 anos. Tínhamos a energia fervilhante da idade e Irmã Aline se aventurou a nos apresentar não apenas o lirismo da Cecília romântica, sonhadora, evasiva, mas a Cecília política, crítica, que denunciou os horrores da Inconfidência Mineira, os horrores da História do nosso Brasil do século XVIII: a escravidão e a exploração do ouro e diamantes, exibindo-nos o “Romanceiro da Inconfidência”, obra que escancara o sistema colonial que favoreceu a exploração dos desvalidos.
Pois bem, com profundo entendimento dessa magistral criação literária, Irmã Aline montou o jogral chamado “Tiradentes ontem, Tiradentes hoje”, com a intenção de comemorarmos o feriado de 21 de abril em cerimônia interna no colégio. Num inteligente jogo intertextual, ela pôs o dedo na ferida daquela época: referiu-se claramente aos abusos da truculenta Ditadura Militar que vigorava no nosso país. Fez isso atualizando os versos de Cecília que se adaptaram perfeitamente para expor o regime. Mesmo tocando nesse perigoso assunto, nosso jogral foi escolhido para ser apresentado no programa televisivo do apresentador Sílvio Santos para cumprir uma prova exigida na disputa do Cidade contra Cidade.
O mais curioso e paradoxal dessa história é que fomos escolhidas para ir a esse programa por uma comissão que nos julgou apressadamente após uma apresentação, com o grupo incompleto, justamente no salão de festas ASSI, o Clube dos Sargentos de Itajubá. Minha pergunta para esse inédito acontecimento é: será que nossos avaliadores prestaram atenção ao texto ou não entenderam a crítica contida no mesmo?
O certo é que lá fomos nós, o grupo de futuras normalistas denunciar o sistema vigente numa aparente homenagem ao herói Tiradentes. Fomos hippies, inconfidentes, rebeldes fazendo bom uso da palavra, mas o que particularmente encantou a todos foi a capacidade interpretativa das colegas Lysia e Marize.
Um dos jurados do programa da TV desfez de nossa apresentação dizendo que estava parecida com festinha de Grupo Escolar; no entanto, o Sr. Brancato Júnior disse que fomos audaciosas e a seus elogios foram somados os da cantora Cláudia Barroso. O saldo foi positivo porque conseguimos os pontos necessários para a cidade passar naquela prova. Passamos incólumes pelo serviço de censura, que em outros casos também não se mostrou tão inteligente, em plena vigência do AI-5. Afinal, não se podia imaginar que um grupo de meninas do interior fosse abordar esse tema, mas foi com ele e por meio da Literatura que Irmã Aline nos ensinou a gostar de ler e interpretar em profundidade os textos poéticos.
Irmã Aline foi tão comprometida com seu trabalho, tão sintonizada com as boas produções editadas na época que, logo após o lançamento do livro Flicts, de Ziraldo, montou, baseado nele, um musical lindíssimo que enfocava o “bulling”, termo que ainda não fazia parte do nosso linguajar. Esse inesquecível espetáculo foi encenado não pela nossa turma e sim pela turma um ano mais nova que a nossa, mas muito nos encantou.

Muitas razões temos então para dizer: - Obrigada, Irmã Aline! Mas é também momento de agradecer a Deus por termos tido um ensino de qualidade, pela oportunidade de termos estudado no CSCJ. Gratidão ainda porque o Pai nos concedeu o presente de estarmos hoje aqui nessa ação de graças pela nossa história e pela nossa vida!

Pelas formandas de 1970, Lúcia Helena Caridade Carneiro 

Viver é Perigoso

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