Quatro meses que passaram voando. Entre março e junho, deste ano, li e estudei a Bíblia Sagrada. De Gênesis ao Apocalípse, 66 livros. Sempre nas primeiras horas da manhã. Não existe mensagem mais completa. Agora, estou recomeçando a leitura.
Hoje, leio no O Globo, a escritora Cora Rónai contando sobre o tradutor da Bíblia, João Ferreira de Almeida. História que a deixou encantada. E a mim também.
" João Ferreira Annes d’Almeida nasceu em 1628, perdeu os pais cedo e foi educado por padres em Lisboa. Ainda muito jovem foi despachado para as Índias Orientais, para o que hoje chamamos Indonésia, mas era, então, um arquipélago dividido em centenas de sultanatos, reinos e fortalezas, disputado ilha a ilha por holandeses e portugueses.
Temos notícias dele em Jacarta (então Batávia), uma cidade efervescente com o comércio de especiarias e as intrigas coloniais. Lá ele entrou em contato com o protestantismo e rompeu com a Igreja, gesto ousado para um súdito de reino católico. Mas não só isso: com apenas 14 anos, decidiu traduzir a Bíblia para o português, convencido de que mesmo os seus conterrâneos mais humildes tinham o direito de compreender as Escrituras sem passar pelo latim dos padres.
Enquanto os outros meninos se jogavam na vida tumultuada à sua volta, ele se inclinava sobre textos em latim e grego, munido de pena e tinta, um ou outro dicionário holandês e uma lamparina bruxuleante em cima da mesa. Sem ar-condicionado ou repelente de insetos; sem Google, sem app de idiomas, sem uma gramática decente. Subversivo até o talo.
Esse garoto obstinado não é uma imagem que eu associasse à Bíblia. Até a semana passada, teria apostado num grupo de velhos frades trabalhando juntos, discutindo vírgulas madrugada adentro.
Na Batávia do século XVII apenas manter-se vivo já era um feito. As Índias Orientais não eram só um caldeirão político e religioso, eram também um festival de doenças tropicais, que dizimavam colonizadores aos milhares. Os mosquitos matavam mais do que as batalhas.
Nosso Almeida, porém, conseguiu sobreviver. Foi ordenado pastor aos 28 anos, passou pelo Ceilão e pela costa da Índia, navegou por mares infestados de piratas e atravessou cidades portuárias ruidosas, onde as vozes de mercadores árabes, chineses e javaneses se misturavam ao som das sinetas cristãs e aos chamados das mesquitas. Enfrentou epidemias, controvérsias teológicas, um ataque de elefante e até um julgamento por heresia em Goa: foi condenado à fogueira em praça pública, mas escapou graças à proteção dos holandeses, que o tiraram de lá a tempo.
Em 1681, após anos de revisões e percalços, seu Novo Testamento foi impresso em Amsterdã. Almeida não se deu por satisfeito. Lançou-se ao Antigo Testamento com a mesma determinação, mas não teve tempo de concluir a tarefa. Morreu em Batávia em 1691, aos 63 anos. Combateu o bom combate, guardou a fé. "
Viver é Perigoso