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domingo, 22 de dezembro de 2024

UMA VIDA...



Você está prestes a tomar o barco.
Sozinho, lúcido e sem sofrimentos providencia um gravador e resolve deixar registrado toda a sua vida. Registrar realmente como aconteceu e não versões fantasiosas e ajeitadas criadas por você mesmo.
Tem que ser rápido. Uma semana voa.
Não terá dificuldades. Os estudiosos dizem que nessas ocasiões a vida toda passa pelo pensamento como se fosse um filme.
Não insista. Não terá lembrança alguma do que aconteceu até os seus três anos. É como não tivessem existidos.
O filme inicia-se aos quatro anos.
Um bom começo seria pelos remédios ruins que lhe enfiaram guela abaixo. Injeções e vacinas. Roupas domingueiras desconfortáveis, fora do tamanho, sapatos rígidos e engolidores de meias de algodão. Banhos parciais de bacia nos finais de tarde. Cuidados especiais com o rosto, pescoço, axilas e pés. O resto ficava para sábado.
Desodorante ? só pomada minancora ou creme de rosas
Meninice.
Televisão nem pensar. Rádio só em ondas médias e curtas. Som horrível de locução de futebol, nas tristes tardes de domingo. Novelas radiofônicas durante à tarde, Jerônimo, o Heroi do Sertão, no final do dia, logo após a agonia provocada pela Ave Maria.
Famigerado instrumento instrumento de tortura criado pelos adultos: Boletim escolar e destaques com caneta com tinta vermelha.
Brincadeiras de rua, primeiras brigas, nadar escondido e pelado no Sapucai. Muito futebol e a primeira paixão, sempre por uma pessoa infinitamente de mais idade. Mágoas profundas e passageiras.
Primeiras grandes perdas pessoais. Por que choravam tanto ? Só entenderia mais tarde: medo da saudade. Ô trem doído !
Vazios, mudança e reconstrução de planos. A mudança assusta. Se brusca, apavora.
Cinema ? "A vida de Cristo", Marcelino Pão e Vinho" e comédias do "Gordo & Magro".
Tirando o Nelson Gonçalves e o Roberto Carlos, música só americana. Todas músicas em línguas diferentes do português eram americanas. Frank Sinatra, Beatles, Ray Charles, Edith Piaf e o ídolo maior, Elvis Presley.
Uma glória poder entrar nos filmes censurados para menores de 14 anos.
Coração disparado, frio no estômago, cabeça girando e o primeiro namoro escondido. As palavras sumiam. Segurar nas mãos levavam ao paraíso.
Tragédias gregas: Levar um fora ou desistir da namorada. Colocar o travesseiro (dizia-se trabeceiro) sobre a cabeça e molhar o lençol com lágrimas, enxugadas com planos de vingança.
"Nunca mais", quando se é jovem pode durar muito pouco. Minutos, horas e não mais que dias.
Cabelos compridos, barbinha por fazer, calça Lee (uma só), duas camisas Lacoste (podia ser com jacarezinho falso) e o supra-sumo da felicidade:
Uma blusa azul acetinado da engenharia.
O embelezamento físico e intelectual acontecia por milagre. Antes mesmo dos cabelos voltarem ao comprimento normal, após o trote, elementos feios e fora de esquadro se transformavam em deuses gregos.
Divino ser paparicado pela sogra. Acontecia.
Trouxas orgulhosos carregando pelas ruas da cidade, réguas T, balizas e teodolitos. Super-homens.
Obrigatório ler os livros "Lobo das Estepes" do Herman Hesse e "O Meio é a Mensagem" do Marshall McLuhan.
Ditadura brava e tímidos movimentos de rebeldia. Chico Buarque e Caetano ajudavam a desabafar.
Fogos históricos. Definitivamente, Hi-Fi, Cuba Libre, vinho Astronauta e Rabo de Galo, não se combinam.
Dane-se o mundo. Quero formar, comprar um fusca zero, um relógio Seiko e mais uma calça Lee. Não vou precisar mais da mágica blusa azul da engenharia.
Vou casar.
Engenheiro, respeitado e louco para usar alguma das teorias que aprendeu na Escola. Difícil.
Casamento, pernil, maionese e pé na estrada.
Vida de luta. Vida de perdas. Vida de conquistas. Vida feliz.
Filhos, netos e retorno do guerreiro para a aldeia.
No rádio do carro, Gonzaguinha canta com realismo:
"Começaria outra vez, se preciso fosse..."
Comum demais para dar um filme. E se desse ? seria um drama ou uma comédia?
O importante é que pelo menos para os seus, seria um épico, daqueles do Charlton Heston.

Viver é Perigoso

3 comentários:

Anônimo disse...

Uma Vida.....
Belo texto zela. Muitas das nossa vida contada no texto também. A infância, a adolescência, o início da vida dos contemporâneos foram muito parecidas.
Por falar nisso ao passar pela finalmente Praça Min. Adolfo Olinto reformada lembrei do amigo. Com o novo piso você dificilmente irá "trupicar" com sua Birkenstock. Gravei essa história aqui contada com humor pois "trupiquei mais de uma vez naquelas antigas pedras.
Abraço amigo. Feliz Natal.
Observador de Cena

Edson Riera disse...

Feliz Natal Observdor, para você e família. Ainda não estive na Pça Adolfo Olinto depois de reformada. Vou lá ver e de chinelo. Abraço

Anônimo disse...

O piso ficou fraquinho...só cimento...o resto ficou bom..mantiveram as árvores...